Sem vergonha

Carnaval pra mim geralmente é uma época miserável. Primeiro porque eu detesto marchinha de carnaval, queria entender que graça tem um cidadão ficar escutando aquelas musiquetas de 1930, fantasiado de palhaço e pulando igual um macaco. Segundo, como todo cara que não bebe, odeio bêbado e nessa época esses proliferam.

Sendo assim, a única coisa que me resta é procurar um refugio que só não é mais tranqüilo porque sou casado e isso limita incrivelmente a possibilidade de determinadas programações.

No carnaval desse ano, assim como nos anos anteriores fomos para o interior na casa de um compadre. Compadre é uma versão mais leve do cunhado. O cidadão que casa, chama alguns parentes e amigos para testemunhar o acontecimento e para não chamar o cara de testemunha ele ganha o nome de padrinho de casamento e por conseqüência compadre.

Pois bem, o compadre no caso tem um dálmata que minha mulher adora e aproveita para matar saudades. Nós moramos em apartamento o que considero inadequado para criar qualquer tipo animal que não seja um peixe (dos pequenos) e também não nutro grande paixão por cães, gatos, pássaros e afins.

Quem lê os meus textos ou me conhece, sabe que sou adepto a liberdade principalmente a de ir e vir. Ser limitado por um outro ser humano não me agrada quanto mais por um animal, portanto no momento não os tenho.

Esse feriado flagrei minha digníssima mulher chamando a dálmata do meu compadre de “sem vergonha”.

Vergonha é algo que sentimos quando fazemos algo reprovável pela sociedade ou por nós mesmos. Uma pessoa, brasileiro, gozando do perfeito juízo ou tido como um ser humano médio sentiria vergonha ao ficar nu no meio da Avenida Paulista ás 18:00 hrs.

Kundera diria que vergonha é o que sentimos quando somos flagrados no erro e não por cometermos o erro em si.

De qualquer forma a vergonha está associada a um juízo de valores íntimos ou não que faz com que não nos sintamos bem, constrangidos, desconfortáveis com uma determinada situação.

Dado que um cão é perfeitamente adaptado para viver uma vida de cão (espécie) e para isso basta apenas existir, e que ele sendo apenas cão cumpre sua finalidade como diria Aristóteles como poderia sentir a vergonha ou a falta dela?

Vergonha é um sentimento exclusivamente humano e como a maioria deles limitado e subordinado ao peso da aprovação de uma série de normas e culturas.

Um cão não necessita de aprovação da sociedade dos cães para rosnar para o gato do vizinho quando ele passa pelo muro; um cão não necessita de aprovação do canil para urinar a cada poste que passa e assim demarcar seu território e também não sentirá a menor vergonha por defecar no meio da Oscar Freire em uma quinta-feira à tarde.

A visão estreita do ser humano em tentar entender o mundo de acordo com a sua própria natureza talvez seja a sua mais grave miopia.

A complexidade das ações humanas pelo menos àquelas que se pode destacar do instinto deveriam ser atribuídas somente a humanos e não a animais ou divindades.

No caso das divindades se torna ainda mais curioso, sem entrar no mérito se o divino é mais uma das formas de castrar a felicidade humana ou não, não é raro ouvirmos que hoje choveu porque Deus está triste ou tal região foi alagada porque Deus estava irritado.

Embora fosse a intenção nas palavras de minha mulher reprovar o ato do cão, sem querer, suas palavras estavam cheias de verdade. “Sem vergonha”, realmente sem vergonha, sem caráter, sem moral, sem ética, sem carnaval, apenas um cão abanando o rabo e procurando viver como cão e interagir como cão no mundo de homens.